“Pede deferimento e aguarda justiça”

Há exatos 40 anos, a Justiça Eleitoral mineira vivenciou um caso muito interessante, em que a protagonista podia ser considerada uma celebridade nacional. O que era para ser uma simples e rápida tramitação de um processo de transferência de título eleitoral ganhou matizes de uma novela televisiva, com personagens e capítulos que alcançaram altos índices de audiência por quase quatro meses.

No processo de número 99.548/1976, com 20 páginas, autuado na então 27ª-A Zona Eleitoral de Belo Horizonte, constava, como requerente, ninguém menos que Márcia Kubitschek (uma das duas filhas do ex-Presidente Juscelino Kubitschek) e, como requerido, o Juízo da 27ª-A.

Tudo começou em 4 de novembro de 1976, data em que a eleitora Márcia Kubitschek enviou um pedido de transferência de seu título, registrado até então na 3ª ZE do Rio de Janeiro, para a 27ª-A ZE de Belo Horizonte. A família Kubitschek ainda estava enlutada com o recente falecimento de JK, ocorrido em um trágico acidente de carro no dia 9 de agosto daquele mesmo ano, provocando grande comoção nacional.

Ao receber a solicitação, o juiz da 27ª-A, José de Barros, determinou a publicação do edital no Diário Minas Gerais e intimou a requerente a apresentar atestado de residência por meio de telegrama à zona de origem para confirmar a situação da eleitora.

O chefe do cartório da 27ª-A, Dálmen Menezes, informou o magistrado que, embora o telegrama tivesse sido expedido em 6 de novembro e a publicação do edital tivesse ocorrido em 1º de dezembro, “até a presente data a requerente, intimada não havia apresentado o atestado de residência”.

No Rio de Janeiro, a chefe-substituta da 3ª ZE, Hélia de Abreu, respondendo o telegrama no dia 17 de janeiro de 1977, informou o Juiz José de Barros que Márcia Kubitschek transferira seu título para aquela zona carioca em 2 de abril de 1976, “motivo pelo qual seu título não poderá ser transferido”.

No dia 20 de janeiro de 1977, Barros decidiu pelo indeferimento do pedido, “considerando informação da 3ª Zona Eleitoral do Rio de Janeiro, já que não decorrera, ainda, prazo de um ano contado da data de inscrição primitiva (2/4/1976) exigido pela lei, ficando ressalvado à eleitora, é óbvio, o direito de renovar o requerimento, caso queira, na ocasião oportuna, conforme art. 55, parágrafo 1º, alínea II, do Código Eleitoral”.

Semanas depois, no dia 11 de fevereiro, o chefe da 27ª-A Dálmen Menezes enviou um memorando a Márcia Kubitschek para explicar a sentença do juiz e informá-la sobre o prazo de três dias (a partir da publicação do edital, no Minas Gerais) para interposição de recurso. A resposta de Márcia ao Juízo da 27ª-A chegou em 18 de fevereiro de 1977, por meio do Recurso 5600860, no qual ela argumentou:

“Não há suporte jurídico-legal na afoita comunicação do chefe da 3ª Zona Eleitoral do Rio de Janeiro, que extrapolou de sua competência, participando do mérito deste processo e induzindo a erro este juízo; afirmo que houve equívoco na informação, uma vez que a suplicante dispunha de cerca de 14 meses de inscrição primitiva, eis que inscrita sob o número 89.107 na 17ª Zona Eleitoral do Rio de Janeiro, desde 30/6/1962, conforme consta no verso do título anterior. O acontecido foi, realmente, mudança de zona, no mesmo município – a requerente passou da 17ª para a 3ª Zona Eleitoral, em virtude da alteração em seu estado civil, uma vez que se desquitara; porque a mudança de zona, no mesmo município e circunscrição eleitoral, não implica alteração do domicílio eleitoral”.

Ao concluir seu recurso, Márcia escreveu: “Requeiro a Vossa Excelência a RECONSIDERAÇÃO do despacho que indeferiu o pedido de transferência, dando procedência ao pedido inicial, determinando-se, desta forma, a passagem de seu domicílio eleitoral do Rio de Janeiro para Belo Horizonte, nesta 27ª-A. Caso Vossa Excelência assim não o entenda, que receba este apelo como RECURSO, na forma do dispositivo no parágrafo 2º, do art. 57 do Código Eleitoral, encaminhando-se o processo ao Egrégio TRE.

Termos em que PEDE DEFERIMENTO E AGUARDA JUSTIÇA!!”

O Juiz José de Barros, na mesma data, considerou, no entanto, que “o requerimento ainda não ficou devidamente instruído, já que estão ausentes a prova de residência mínima de três meses (embora a interessada tivesse sido regularmente intimada a oferecê-la) e a prova de quitação eleitoral, pois não consta que ela tenha votado nas últimas eleições, não se sabendo se justificou ou não a sua falta, ou se pagou, na zona eleitoral de origem, multa que então seria devida”.

O magistrado determinou que fosse renovada a intimação à eleitora e expedido novo telegrama à zona eleitoral de origem para informação sobre a quitação eleitoral. “Após o cumprimento dessas exigências da Lei Eleitoral, voltem-se os autos conclusos, a fim de que seja decidido por este juízo o pedido de reconsideração formulado pela requerente”, finalizou.

E a novela continuou: em 24 de fevereiro de 1977, novamente o chefe da 27ª-A enviou ofício a Márcia sobre a decisão do juiz e um novo telegrama à 3ª ZE do Rio. Seis dias depois, em 2 de março, Dálmen Menezes recebeu um documento no qual constava que a eleitora havia pago multa máxima de CR$ 68,00 (Sessenta e oito Cruzeiros), referente às ausências dela às eleições de 15/11/1976. Após anexar os documentos que ainda estavam pendentes, Menezes, no dia 3 de março, enviou os autos ao Juiz Barros, que, enfim, decidiu:

No momento, observa-se que a requerente já atendeu as exigências previstas no art. 55, parágrafo 1º, I e III, do Código Eleitoral, pois deu entrada de seu requerimento de transferência eleitoral no prazo da lei e provou a residência mínima de três meses no novo domicílio, conforme consta em ofício do chefe do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS).

Restaria examinar, então, a questão relacionada com a transcorrência de pelo menos um ano de inscrição primitiva, exigência feita pelo inciso II, do parágrafo 1º, do art. 55 do Código Eleitoral. Este juízo havia indeferido a pretensão da requerente, baseando-se em que esta exigência não estaria satisfeita. Pelo título da requerente, por meio de anotação do verso, nota-se que a interessada é eleitora desde 30/6/1962 no Rio de Janeiro, antigo domicílio, no qual apenas foi transferida de uma zona para outra, o que se verificou em 2/4/1976.

Assim, ficaram satisfeitas as condições para a transferência pleiteada. Pelo exposto, reformo a minha decisão anterior para deferir, como defiro, o pedido de transferência formulado, determinando, nesta oportunidade, que se cumpra o disposto no art. 61, parágrafo 3º do Código Eleitoral”.


Os dois últimos capítulos da novela eleitoral aconteceram nos dias 11 de março – data da publicação, no Minas Gerais, do edital de deferimento da transferência do título de Márcia – e 17 de março de 1977, dia em que o Juiz José de Barros determinou a expedição do novo título eleitoral para a filha do ex-Presidente JK.

Márcia Kubitschek, cujo número do título era 118614160299, morava em Belo Horizonte desde 25 de julho de 1976, na Rua Timbiras, 2.500/832, Centro. Quinze dias após ter vindo para a capital mineira, ficou órfã de pai. Márcia faleceu em 5 de agosto de 2000, aos 56 anos de idade.

Publicado em 4/3