Voto do deficiente físico no Brasil: conquista e reconhecimento

No dia da votação, às 8h da manhã, o “Seu” José da Silva, brasileiro, eleitor e cadeirante, era um dos primeiros da fila na entrada da seção especial da escola em que exerce o sagrado direito do voto, em Belo Horizonte. Perto dali, no Instituto São Rafael, também na Capital, Dona Maria de Souza, brasileira, deficiente visual, chegava para exercer sua cidadania, em uma das cinco seções instaladas para atendimento específico dos eleitores cegos, naquele local.

“Seu” José e Dona Maria são dois exemplos que ilustram o universo de pessoas que, apesar de suas limitações físicas e mobilidades reduzidas, não abrem mão do direito de participar efetivamente da vida política do País, por meio do voto. São indivíduos que tiveram seus direitos reconhecidos já em 1975, ano em que a Organização das Nações Unidas (ONU) estabeleceu a Declaração dos Direitos das Pessoas com Deficiência, que marcou o início de uma luta histórica pela defesa da cidadania e do bem-estar dessas pessoas. No Brasil, a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 1º, garante o direito à cidadania e à dignidade a todos os brasileiros, incluindo as pessoas com deficiência.

A Justiça Eleitoral brasileira, nesse contexto, vem, também, ao longo dos anos, por meio do aperfeiçoamento de sua legislação, assegurando o acesso amplo e irrestrito ao processo eleitoral dos eleitores com deficiência ou com mobilidade reduzida.

Mas nem sempre foi assim. Apesar de terem trazido uma série de inovações, como sufrágio feminino, sistema de representação proporcional, monitoramento das atividades dos partidos políticos, criação da Corregedoria-Geral (no TSE) e da cédula oficial para todas as eleições e em todo o País, quatro dos cinco Códigos Eleitorais brasileiros abordaram timidamente a questão relativa ao alistamento e ao voto das pessoas com deficiência, limitando-se apenas a mencionar o voto do eleitor cego e a criação de seções eleitorais nas vilas e povoados e nos estabelecimentos de internação. Somente no Quinto e atual Código Eleitoral o assunto passou a ser mais abrangente.

No Primeiro Código Eleitoral (Decreto-Lei 21.076/1932), por exemplo, o artigo 131, com seu parágrafo único, dizia que “os cegos alfabetizados que reúnam as demais condições de alistamento, podem qualificar-se mediante petição por eles assinada, e que suas cédulas, no ato de votar, serão colocadas na sobrecarta e na urna pelo presidente da Mesa”.

O Segundo Código Eleitoral (Lei 48/1935), em seu artigo 60, especificava o mesmo texto, desta vez com um pequeno acréscimo: “os eleitores cegos alfabetizados que, reunindo as condições de alistamento, poderão qualificar-se mediante petição, por eles assinada, com as letras comuns ou com as do sistema de Braille; a assinatura com as letras do sistema de Braille deverá ser feita na presença de um dos diretores ou professores de institutos de educação de cegos, e, reconhecida como havendo sido escrita perante ele, diretor ou professor, pelo alistando”.

No texto do Terceiro Código Eleitoral (Decreto-Lei 7.586/1945) não há nenhuma menção ao tema. Em seu artigo 4º, a pessoa portadora de deficiência física parece estar incluída no termo “inválidos”, para o qual o alistamento e o voto não são obrigatórios. O legislador, em outro artigo – o 144 – transfere para o TSE a responsabilidade de baixar instruções para resolver “os casos omissos e para melhor compreensão da presente lei”.

Já no Quarto Código Eleitoral (Lei 1.164/1950, art. 87, parágrafos 7º e 8º), o texto também se reportava somente aos eleitores cegos, ao destacar que “poderão votar desde que possam assinar a folha de votação em letras do alfabeto comum”. Além de não mencionar textualmente o sistema em Braille, a Lei exigia o título desse eleitor no ato da votação, que era feita “em separado com as cautelas devidas”.

O Quinto e atual Código Eleitoral (Lei 4.737/1965, art. 135 e 136) procurou tratar o tema de forma mais abrangente. Assim, o TSE determinou aos TREs que, a cada eleição, expedissem instruções aos juízes eleitorais, para orientá-los na escolha dos locais de votação de fácil acesso para o eleitor com deficiência física ou mobilidade reduzida. No seu artigo 150, incisos I a III, o atual Código Eleitoral, ao referir-se ao eleitor cego, descreve todo o processo de votação dele, desde a chegada à seção especial até a saída do recinto.

Outro tópico tratado na Lei 4.737/1965, artigo 6º, é o alistamento facultativo para as pessoas com deficiência (aqui denominadas de “inválidas”). No entanto, o TSE, em 2004, ao argumento de que esses deficientes físicos são eleitores comuns, baixou a Resolução 21.920, que tornou obrigatórios para essas pessoas o alistamento eleitoral e o voto. Mas esse mesmo TSE, nessa Resolução, ao interpretar que existem casos de pessoas com deficiência cuja natureza e gravidade desta as impossibilitam ou tornam oneroso o exercício de suas obrigações eleitorais, entendeu que, nestes casos, esses indivíduos podem requerer por si ou por meio de terceiros devidamente habilitados, certidão de quitação eleitoral com prazo de validade indeterminado, tornando-as isentas da obrigação de votar.

O atual Código Eleitoral também menciona a determinação para que os Tribunais Eleitorais providenciem a instalação de seções nas vilas, povoados, estabelecimentos de internação coletiva e nos leprosários onde houvesse, pelo menos, 50 eleitores.

Por falar em portadores de hanseníase, o direito ao voto desses indivíduos merece um capítulo à parte. A visão sobre esse assunto começou a sofrer modificações nos anos 40. O Serviço Nacional de Combate à Lepra (do então Departamento Nacional de Saúde – órgão federal), criado em 1941, considerava que o alistamento e o voto dos pacientes provocariam uma série de inconvenientes, desde o prejuízo causado à profilaxia da doença, passando pelo perigo de desordens nos asilos, até a incapacidade dos doentes em escolherem candidatos, já que viviam isolados.

Em 1945, uma resolução do TSE autorizava a criação de seções especiais dentro dos leprosários, mas, em 1950, o Tribunal mudou o entendimento, manifestando-se contrariamente ao voto pelos hansenianos.

Em 1951, porém, a Lei 1.430 introduziu uma alteração no Código Eleitoral vigente à época, e permitiu, finalmente, que os portadores de hanseníase reconquistassem o direito ao voto, o qual seria exercido em seções especiais dentro dos institutos de tratamento à doença.

O amparo legal mais recente aos deficientes físicos ou com mobilidade reduzida ao processo eleitoral – do alistamento, solicitação à Justiça Eleitoral de seção especial, da prioridade para votar e das condições físicas das seções - vem da Resolução 23.381/2012, do TSE, que institui o Programa de Acessibilidade, cujo principal objetivo é a implementação gradual de medidas para remoção de barreiras físicas, arquitetônicas, de comunicação e de atitudes, para promover o acesso com segurança e autonomia de tais pessoas no processo eleitoral.

Dentre os principais tópicos dessa Resolução, estão o monitoramento periódico das condições dos locais de votação em relação às condições de acessibilidade; a disponibilização de fones de ouvido nas seções especiais e naquelas onde houver solicitação específica do eleitor cego; a comunicação, por meio de campanhas, pelos Tribunais Eleitorais, ao eleitor com necessidades especiais sobre a permissão de pessoa de sua confiança para auxiliá-lo durante a votação; o encaminhamento, pelos Tribunais Eleitorais, aos cartórios eleitorais, de orientações sobre a importância do registro da situação do eleitor com deficiência ou com mobilidade reduzida.

Também mais recentemente, em julho de 2015, foi sancionado o “Estatuto da Pessoa com Deficiência – Lei Brasileira de Inclusão”, uma nova legislação que assegura direitos e garante a igualdade de oportunidades a todas as pessoas. No que diz respeito à Justiça Eleitoral, a Lei atualiza o Código Eleitoral vigente e diz que “os TREs deverão, a cada eleição, expedir instruções aos juízes eleitorais para orientá-los na escolha dos locais de votação, de modo a garantir acessibilidade para o eleitor com deficiência física ou com mobilidade reduzida, inclusive em seu entorno e nos sistemas de transporte que lhe dão acesso”.

Segundo dados de 2012 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Brasil possui 45,6 milhões de pessoas (23,9% da população) com deficiência, incluindo-se visual (6,5 milhões), auditiva (9,7 milhões), motora (13,2 milhões) ou mental (2,6 milhões).

De acordo com dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), referentes às eleições de 2014, 148.600 eleitores com algum tipo de deficiência votaram nas 32.267 seções especiais espalhadas pelo Brasil. Em Minas Gerais, também nas eleições de 2014, os deficientes ou com mobilidade reduzida puderam votar nas 2.273 seções especiais, 228 delas em Belo Horizonte. As seções especiais foram criadas em 2002 pela Justiça Eleitoral por meio da Resolução 21.008/2002, do TSE.

Em janeiro de 2014, outro levantamento do TSE revelou que o País tinha, à época, 378.806 eleitores com deficiência. Consideradas as tipologias, 13.983 pessoas se declararam deficientes auditivas, 52.266 deficientes visuais, 141.282 com problemas de locomoção, 23.444 com dificuldade para o exercício do voto e 183.674 com algum outro tipo de deficiência. Nesse quantitativo, um mesmo eleitor pode declarar ter mais de uma deficiência, simultaneamente. São Paulo é o Estado com maior número desses eleitores (117.471), seguido do Rio de Janeiro (39.216), Paraná (34.224) e Minas Gerais (18.966).

Seu José e Dona Maria – do início deste artigo – votaram com tranquilidade em suas respectivas seções especiais. Apesar de limitações físicas, eles se mostraram conscientes no exercício da cidadania, condição precípua para a melhoria de suas vidas.

 Publicado em 2/10/15