A primeira Constituição brasileira completa 200 anos

ponto da memoria constituicao 1824

 

O dia era 25 de março de 1824 e o Paço Imperial estava em festa. Aliás, não se falava em outra coisa no Rio de Janeiro – o Brasil, recém-separado de Portugal, preparava-se para receber sua primeira Carta Constitucional após 300 anos de colonização portuguesa. A situação política não era das melhores e havia conflitos de ordem política em várias partes do território brasileiro. De 1532 até 1821 as eleições aconteciam apenas nas vilas (municípios), mas o Brasil Imperial passaria a ter regras próprias para eleger seus representantes. 

Para se compreender melhor o conteúdo da Constituição Brasileira de 1824 é necessário conhecer um pouco sobre o contexto em que foi promulgada a primeira Carta Constitucional do Brasil.

1823

A primeira experiência constitucional do Brasil durou seis meses e acabou em confusão. O Brasil acabara de declarar sua independência, mas estava dividido internamente, pois enquanto algumas províncias resistiam à separação de Portugal, outras tentavam separar-se do Brasil para se tornarem repúblicas isoladas. 

Portugal ainda ameaçava retomar à força sua antiga colônia e o Império recém-formado buscava o reconhecimento das demais nações para se legitimar. Foi nesse cenário confuso que, em 3 de maio de 1823, representantes das então 14 províncias brasileiras iniciaram a redação da Carta. Os trabalhos, no entanto, foram drasticamente interrompidos na madrugada de 12 de novembro daquele mesmo ano, pelas tropas do Exército. 

Proclamado imperador em 1º de dezembro de 1822, Dom Pedro I, liberal moderado, queria, assim como a maioria dos deputados, uma constituição que impedisse eventuais abusos de poder pelo monarca, pela classe política ou pela própria população. Pedro I defendia uma monarquia forte, mas com efetiva participação do Parlamento, a fim de evitar a fragmentação do país. Desejava a abolição gradativa da escravidão, uma justa reforma agrária e um desenvolvimento econômico livre de empréstimos estrangeiros. 

Havia, porém, os “absolutistas” – geralmente grandes proprietários de terras –, que defendiam uma monarquia absoluta e centralizada, além da continuidade da escravidão e da manutenção de seus privilégios econômicos e sociais. 

Já os “liberais federalistas”, simpáticos à República, pregavam uma monarquia meramente figurativa, a supremacia do Parlamento e, contraditoriamente, a manutenção da escravidão. 

O esboço da constituição de 1823 foi redigido pelo republicano Andrada Machado e Silva, irmão de José Bonifácio de Andrada e Silva. Entusiasta das mudanças políticas e sociais forçadas pela Revolução Francesa, a redação acabou por tender às aspirações do grupo dos “liberais federalistas”. 

O projeto constitucional de 1823 previa a divisão do país em comarcas meramente judiciais (e não em unidades administrativas). Previa também a separação dos três Poderes, sendo o Executivo delegado ao imperador, mas com a responsabilidade de seus atos recaindo sobre os ministros de Estado. Cidadãos brasileiros seriam somente os homens livres, sem considerar os escravizados que eventualmente viessem a serem libertados. 

O projeto constitucional de 1823 restringia as condições de qualificação dos eleitores. Seria instituído o voto indireto e censitário com base nas plantações de mandioca, sendo o mínimo exigido de 150 alqueires para eleitores de primeiro grau (paroquiais) e de 200 alqueires para eleitores de segundo grau (provinciais). Nesse caso, a relação com a mandioca significaria não somente as terras e o lucro da colheita, mas também a mão de obra escravizada. 

Ao final, os muitos conflitos de interesse levaram, finalmente, os deputados a se rebelarem contra o imperador, limitando drasticamente seus poderes e dando total autonomia ao Legislativo. 

Insatisfeito com os rumos republicanos do projeto, Dom Pedro I, em novembro de 1823, com o auxílio do Exército, dissolveu a Assembleia Constituinte, determinando a prisão e o exílio dos principais revoltosos.

1824 

Contando com dez conselheiros de sua confiança, sete deles oriundos do primeiro Conselho de Estado, Dom Pedro I inicia, em 13 de dezembro de 1823, a elaboração da nova e definitiva Carta Constitucional, trabalhos que foram concluídos em apenas 15 dias. 

O texto final, que aproveitou a maior parte do esboço da Carta anteriormente redigido, foi encaminhado para conhecimento de todas as câmaras municipais, sendo unanimemente aprovado. A primeira Constituição Brasileira foi outorgada e jurada na Catedral do Império em 25 de março de 1824 pelo próprio imperador. 

A forma de governo escolhida foi a Monarquia Constitucional, hereditária e representativa. O Brasil foi dividido em províncias administrativas e os poderes políticos, em quatro – Executivo, Legislativo, Judiciário e Moderador – sendo esse último copiado do sistema monárquico-parlamentarista britânico, na qual a figura do imperador serviria à resolução de impasses e asseguraria o funcionamento equilibrado do governo. 

As primeiras regras do sistema eleitoral brasileiro foram definidas na Constituição de 1824, sendo os órgãos máximos o Imperador e a Assembleia Geral, composta pela Câmara dos Deputados e Senado, com os deputados e senadores eleitos pelo voto dos cidadãos. 

O voto era obrigatório e censitário. As eleições eram indiretas e aconteciam em dois graus. Os eleitores de primeiro grau (Votantes de Paróquia) tinham de ser homens com mais de 25 anos de idade, católicos e com renda mínima de 100 mil réis. Eles escolheriam os eleitores de segundo grau (Eleitores de Província), que, por sua vez, deveriam ter renda anual mínima de 200 mil réis. Esses eleitores de segundo grau (de Província) escolhiam os deputados e senadores provinciais e gerais, lembrando que os senadores eram vitalícios. 

Excluídos da vida política nacional ficaram trabalhadores assalariados em geral, soldados, mulheres, índios e menores de 25 anos. Os escravizados não podiam votar, mas, ao serem libertos, poderiam participar das eleições de primeiro grau (Votantes de Paróquia), desde que estivessem de acordo com as imposições censitárias, ou seja, renda mínima de 100 mil réis anuais – montante que, na época, poderia ser acessível a qualquer trabalhador braçal. 

As eleições aconteciam no interior das igrejas, seguindo a liturgia da Igreja Católica. Juntamente com delegados e juízes de paz, os párocos faziam o recrutamento e o reconhecimento dos eleitores, e também organizavam as eleições. No entanto, por força do “Patronato” (norma que submetia o Poder Eclesial ao Império do Brasil) todas as decisões dos clérigos deveriam ser submetidas ao imperador.

Apesar de algumas restrições à liberdade religiosa, na prática ela foi ampla, pois a todas as religiões foi garantida a liberdade de culto, incluindo a construção de templos por protestantes e judeus.

A Constituição de 1824, influenciada pelas constituições espanhola e norte-americana, foi aplicada ao longo de 65 anos, até 1889, sendo a de mais longa duração até os dias atuais. Foi também a mais liberal de sua época em todo o Ocidente e uma das primeiras a conter um extenso rol de direitos e garantias individuais, dentre eles a liberdade de expressão e de imprensa.

Berenice Sobral
Seção de Memória Eleitoral / CGI/SGG