Os 70 anos da cédula única

imagem da cedula unica de 1955

Entre os anos de 1955 e 2000 o eleitorado brasileiro elegeu seus representantes por meio de cédulas em papel impressas e distribuídas pelo Tribunal Superior Eleitoral. A partir das eleições de 2000, quando a votação informatizada foi finalmente implantada em todo o país, as cédulas em papel deixaram de ser os suportes principais para a legítima manifestação do voto do eleitor.

Refletindo, em sua história, as muitas mudanças e aprimoramentos por que passaram as leis eleitorais no país, a cédula única, idealizada pela Justiça Eleitoral, foi implantada, em 1955, após muitas discussões e embates no Congresso Nacional. Mas por que tal projeto provocou tantas discussões entre os parlamentares? As respostas seriam encontradas nos complexos acontecimentos político-eleitorais que, iniciados na década de 1930 e aprofundados na “Era Vargas”, viriam a influenciar o processo de redemocratização do país, a partir de outubro de 1945. Vale a pena conhecer um pouco sobre as suas origens.

ANTECEDENTES HISTÓRICOS

A Revolução de 1930 interrompera as práticas políticas e eleitorais da “Primeira República”, período que vai de 1889 a 1930, caracterizado por uma forte ligação entre o poder econômico e as representações político-eleitorais nos estados, com destaque para as elites políticas dos estados de Minas Gerais e São Paulo, e também por flagrantes e diversificadas práticas de fraudes eleitorais. Getúlio Dornelles Vargas, que presidia o estado do Rio Grande do Sul, chegaria à Presidência da República, em outubro daquele ano, a partir de um jogo de interesses envolvendo as elites políticas e militares de outros estados, com destaque para Rio de Janeiro, Paraíba e Minas Gerais.

Governando inicialmente em caráter provisório, com o apoio de uma Junta Militar, Vargas assumiu a Presidência do país pressionado por um forte apelo popular que exigia, dentre outras mudanças, uma nova Constituição e a moralização do processo eleitoral. Enfrentando grande oposição das elites políticas de São Paulo, que se viram despojadas do poder político que até então desfrutavam, Vargas entrega ao povo, em fevereiro de 1932, o primeiro Código Eleitoral do país, a partir do qual se instituiu, dentre outras novidades, o voto secreto, a representação proporcional, o sufrágio feminino, a obrigatoriedade do voto, o título eleitoral com fotografia e a Justiça Eleitoral. Em 1934, a nova Constituição Brasileira referendaria as inovações eleitorais, que, em análise geral, incentivavam uma maior participação dos eleitores, bem como a ampliação das legendas partidárias de oposição aos partidos políticos tradicionais em cada estado da federação, em um nítido aceno às práticas democráticas.

Após a promulgação da Constituição de 1934, em 17 de julho daquele ano, os deputados constituintes confirmaram Getúlio Vargas na Presidência da República, cargo que ele ocuparia como presidente eleito indiretamente até 1938, quando, enfim, os brasileiros escolheriam, pelo voto direto, o Presidência da República. No entanto, diante de uma série de graves acontecimentos nacionais e internacionais, dentre eles a decretação do “Estado de Guerra”, em 1935, em razão da chamada “Intentona Comunista”; o crescimento da violência e do banditismo nos estados do Nordeste; o fortalecimento das legendas de oposição ao Governo em todo o país e o início dos conflitos internacionais que levariam, em 1939, à Segunda Guerra Mundial, Vargas decretou, em novembro de 1937, o estabelecimento do “Estado Novo”, um regime ditatorial a partir do fechamento do Congresso Nacional e das assembleias legislativas, da extinção dos partidos políticos, cassação; prisão e exílio de parlamentares e da suspensão sumária da Justiça Eleitoral. Uma nova Constituição, aos moldes da Carta polonesa, foi passou a vigorar naquele mesmo ano para referendar o novo regime.

Durante seus oito anos como ditador, Vargas buscou fortalecer uma economia nacionalista, incentivando grandes obras, e dedicando-se especialmente às classes operárias a partir da criação de direitos trabalhistas e da Justiça do Trabalho. Tal esforço construiu em torno dele uma forte imagem de protetor dos mais pobres, ao mesmo tempo em que uniu interessados em torno de uma agremiação que, tempos depois, viria a materializar-se no Partido Trabalhista Brasileiro.

O período do Estado Novo se encerrou no início de 1945, num cenário em grande parte influenciado pelo fim da Segunda Guerra Mundial e consequente derrota dos regimes totalitários – Nazismo e Fascismo – na Europa. Pressionado a renunciar, pela alta cúpula das Forças Armadas, mas consciente de que os ares democráticos que retornavam à Europa chegariam rapidamente o Brasil, Vargas fez publicar, em 28 de fevereiro de 1945 o Ato Adicional nº 9 à Constituição Federal, definindo prazo de três meses para a convocando eleições gerais em níveis nacional, estadual e municipal. Em 28 de maio daquele mesmo ano, Getúlio Vargas baixaria o Decreto-Lei nº 7.586, reinstalando a Justiça Eleitoral e regulamentando o alistamento eleitoral e as eleições.

Os partidos políticos voltaram a se organizar e, nesse contexto, as tendências políticas voltaram a se agrupar. Na UDN – União Democrática Nacional – reuniram-se todos os opositores ao Governo Vargas. Já os que apoiavam Vargas e até mesmo sua permanência no poder aglutinaram-se no PSD – Partido Social Democrático (preferido pelos representantes das oligarquias mais tradicionais, sendo Getúlio Vargas seu presidente honorário) e no PTB – Partido Trabalhista Brasileiro (antiga agremiação presidida por Getúlio). Outras legendas concorrentes em 1945 foram o PR – Partido Republicano, o PRP – Partido de Representação Popular, o PAN – Partido Agrário Nacional, o PRD – Partido Republicano Democrático, o PPS – Partido Popular Sindicalista e o PCB – Partido Comunista do Brasil, cuja cassação, em 1937, havia sido revogada com o restabelecimento das normas eleitorais.

As eleições gerais foram marcadas para o dia 2 de dezembro de 1945. A Justiça Eleitoral conseguiu, em tempo recorde (seis meses apenas), reinstalar os Tribunais Regionais Eleitorais nos estados e os Juízos Eleitorais nos municípios; providenciar o alistamento de todo o eleitorado brasileiro e para organizar todo o processo eleitoral. Os partidos, por sua vez, corriam também contra o tempo para se organizar, lançar seus candidatos e conquistar o eleitorado.

O cenário político de 1945 era tenso. Getúlio Vargas, que somente deveria deixar a Presidência no início de janeiro, após a proclamação do novo presidente eleito, esforçava-se para continuar no cargo e utilizava sua força política junto ao PSD e ao PTB para concretizar seus planos. Surgiu, então, o “Queremismo”, um movimento popular, incentivado pelo PTB, com o slogan “Queremos Getúlio Vargas na Presidência do Brasil”. O movimento cresceu espantosamente e acabou sendo apoiado pelo Partido Comunista. Preocupados com tal situação, que poderia se configurar em um golpe, as Forças Armadas se mobilizaram e forçaram Getúlio Vargas a renunciar à Presidência da República, o que aconteceu em 29 de outubro daquele ano.

Com o cargo vago, os militares entregaram o poder ao Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro José Linhares, que manteve a data das eleições no dia 2 de dezembro. Fora da Presidência, Vargas usou novamente seu domínio político em favor do candidato do PSD, o General Eurico Gaspar Dutra, seu antigo Ministro da Guerra, assegurando-lhe a vitória. Na época não havia o cargo de Vice-Presidente. Filiado ao PSD, Getúlio Vargas foi eleito senador pelo Rio Grande do Sul nas eleições gerais de 1945.

A nova Constituição Federal, promulgada em 18 de setembro de 1946, seguia as tendências liberais e democráticas. O mandato presidencial seria de cinco anos, sem direito à reeleição, e foi criado o cargo de Vice-Presidente da República. Determinou-se, no entanto, que a eleição para os cargos de Presidente e Vice-Presidente aconteceriam separadamente. Nereu Ramos (PSD) foi eleito indiretamente pelos constituintes como Vice-Presidente até a próxima eleição presidencial, em 1950.

Sigilo do voto – uma preocupação constante

O país se industrializava a passos largos, atraindo cada vez mais brasileiros para as capitais e maiores cidades. As culturas e práticas do populismo e do clientelismo se cristalizaram nos meios políticos e sindicais brasileiros durante os anos da Era Vargas. Durante a Primeira República, as oligarquias determinavam os rumos da política, mas agora, após tantas crises econômicas e políticas e após uma guerra mundial, o operariado ganhava espaço nas escolhas políticas e os partidos ali estavam para representar as novas massas urbanas que iam surgindo e crescendo, em especial, nos grandes centros. Começava a se formar um novo relacionamento de barganha entre governantes e governados e aquela antiga troca de favores entre o chefe político e seus “clientes” agora precisaria ser feita com a coletividade dos trabalhadores urbanos, eleitores que também passariam a determinar os rumos da política em todos os níveis.

Em 24 de julho de 1950, no final do Governo Dutra, o Brasil ganhou seu quarto Código Eleitoral (Lei nº 1.164). A Justiça Eleitoral buscava aprimorar a organização do processo eleitoral e o sigilo do voto era uma preocupação crescente. É que, a partir do Código Eleitoral de 1945, os partidos políticos passaram a ser condição essencial para as candidaturas, não mais sendo permitidas as candidaturas avulsas (candidatos sem partido), situações que frequentemente aconteciam no primeiro período da Justiça Eleitoral (1932-1937).

Partidos políticos ganham importância

As novas regras eleitorais referendadas pela Constituição de 1946, fortaleciam cada vez mais os partidos políticos, levando-os a exercer um domínio nunca antes visto sobre o eleitorado. Além da exclusividade dos partidos políticos na apresentação dos candidatos, o Código Eleitoral de 1945 ampliava a qualificação do eleitorado ao estabelecer, dentre outros, o voto obrigatório às mulheres trabalhadoras.

Como os partidos necessitavam dos votos dos muitos eleitores, esses passaram a ser o alvo direto das legendas. As campanhas políticas passaram a ter grande importância e as consequentes promessas começaram a fazer parte do cenário político, através de comícios nas ruas, nas emissoras de rádio e, em especial, no contato direto com os eleitores, por meio dos sorrisos, dos apertos de mão e da distribuição das cédulas eleitorais que, naquela época, eram pequenos cartões com o nome e o cargo do candidato já impressos. A partir de 1945 esse tipo de material passou a ser fartamente distribuído nas ruas.

Durante as campanhas eleitorais, os partidos montavam bancas ao longo das principais avenidas e ruas das cidades para a distribuição das cédulas, mas também costumavam abarrotar as cabines eleitorais com esse mesmo material para que o eleitor também ali pudesse escolher os cartões (cédulas) com os nomes de seus candidatos para inseri-los nas sobrecartas oficiais – envelopes opacos e rubricados pelos presidentes das mesas receptoras de votos, instituídos pelo Código Eleitoral de 1932 e reafirmados pelo Código Eleitoral de 1950. 

Com o fortalecimento do papel dos partidos nas eleições, as disputas eleitorais, a partir de 1946, passaram a ser mais tumultuadas, fato que contribuía para transformar as apurações dos votos quase que em cenários de guerra. Partidos com maior poder econômico podiam imprimir quantidades maiores de cédulas e contratar um maior número de cabos eleitorais para a distribuição dos cartões, em prejuízo daqueles com menor poder aquisitivo. Além dos embates nas ruas, aumentavam, a cada disputa, as impugnações dos votos nas mesas de escrutínio. Os fiscais dos partidos questionavam constantemente a contagem das cédulas, retardando até por vários dias um trabalho que poderia ser feito com mais rapidez, e um dos motivos que os levavam ao enfrentamento judicial estava no fato de que, com certa frequência, os eleitores colocavam, na mesma sobrecarta, as cédulas (cartões) de dois ou mais candidatos a um mesmo cargo.

Além desse tipo frequente de problema, a prática de fraudes ainda se fazia presente, dentre elas o chamado “voto marmita”, modalidade em que cabos eleitorais mal-intencionados entregavam envelopes já lacrados e contendo votos aos eleitores nas filas, para que esses, ao receber as sobrecartas nas seções de votação, guardassem-nas no bolso e colocassem na urna a sobrecarta falsa. Ao deixar a seção eleitoral, o eleitor entregava o envelope oficial original ao cabo eleitoral que, por sua vez, colocaria mais cédulas de seu candidato e o lacraria, para continuar a prática (agora com a assinatura original do presidente da seção) aos demais eleitores que aceitassem vender seu voto.

A CÉDULA ÚNICA DE 1955

Diante de todos esses problemas, agravados pelo estado emocional dos brasileiros, em decorrência do suicídio de Getúlio Vargas, ocorrido em agosto de 1954, o Ministro Edgard Costa, Presidente do Tribunal Superior Eleitoral, passou a defender a ideia de uma nova modalidade de cédula eleitoral que seria ela mesma uma própria sobrecarta, ou seja, uma cédula que, ao ser devidamente dobrada, funcionaria também como um envelope, garantindo, assim, o sigilo do voto.

Após vários debates na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, o Projeto de Lei nº 525, de autoria do senador Domingos de Vellasco, do PSB de Goiás, prevendo o uso de cédulas únicas para todos os pleitos majoritários, foi publicado no Diário Oficial do Congresso Nacional do dia 4 de agosto de 1955. No dia 30 de agosto, a Lei nº 2.582/1955, assinada pelo então Presidente da República João Café Filho, instituía-se finalmente a Cédula Oficial das eleições, que passou a ser mais conhecida por cédula única. Naquele ano, porém, a cédula única seria aplicada apenas aos cargos de Presidente e Vice-Presidente da República.

É que, no dia 3 de outubro de 1955 haveria a eleição para os cargos de Presidente, de Vice-Presidente e também para deputados federais. Mas também estavam previstas eleições de governadores nos estados do Pará, Maranhão, Rio Grande do Norte, Paraíba, Alagoas, Paraná, Santa Catarina, Minas Gerais e Mato Grosso. E, ainda, eleições municipais em 80 novos municípios de Minas Gerais e em 178 municípios de São Paulo, além de municípios em outros estados, como Maranhão, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Na impossibilidade de a Justiça Eleitoral imprimir tantas cédulas, optou-se pelo uso da cédula única apenas para a eleição do Presidente e do Vice-Presidente da República. Ao final das apurações, Juscelino Kubitschek, do PSD, foi eleito Presidente por 35,68% do eleitorado e João Goulart, do PTB, foi eleito Vice-Presidente com 44,25% dos votos.

A Lei 2.582/1955 determinava que a Justiça Eleitoral seria a responsável pela impressão das cédulas oficiais. O Tribunal Superior Eleitoral as repassaria aos Tribunais Regionais que, por sua vez, redistribuiriam as cédulas únicas aos Juízos Eleitorais, para que finalmente chegassem aos presidentes das Mesas Eleitorais. Inicialmente, porém, em seu artigo segundo, a lei não excluía a faculdade anteriormente concedida aos partidos políticos de também imprimirem e distribuírem cédulas do mesmo modelo para sua utilização nos termos legais. Deste modo, naquele ano de 1955, os eleitores poderiam ter acesso às cédulas únicas nas seções eleitorais, mas também podiam obtê-las a partir dos candidatos e cabos eleitorais, nas ruas.

Uma outra curiosidade relativa àquele pleito de 1955 é que o eleitor teria que entrar na cabine indevassável por duas vezes. A primeira, para preencher a cédula única com os nomes dos candidatos a Presidente e a Vice-Presidente (os votos eram dados separadamente) e a segunda para inserir, na sobrecarta, as cédulas/cartões com os nomes dos demais candidatos). Os jornais da época foram unânimes em registrar as situações complexas que essa dupla votação ocasionou a partir das imensas filas que se formaram, com uma média de cinco minutos para a permanência de cada eleitor na cabine.

A CÉDULA ÚNICA DE 1958

Uma vez que a legislação determinara, em 1955, a utilização de cédulas oficiais para a eleição dos cargos majoritários, a cédula única foi novamente aplicada à eleição dos senadores e dos suplentes de senador. A indicação de senadores e suplentes era também feita separadamente, uma vez que os suplentes não estavam atrelados em chapas aos senadores, podendo pertencer a partidos diferentes, a exemplo dos cargos de presidente e vice-presidente da República.

Assim, no dia 3 de outubro de 1958, havendo eleições aos cargos de senador, governador, vice-governador, deputado federal, deputado estadual e vereador – situações que se diferenciavam entre os estados, a cédula única entrou novamente em cena para a indicação exclusiva de senadores e de suplentes, ocasionando, uma vez mais, as longas filas e os tumultos entre eleitores, mesários e presidentes de Mesa, já que novamente os eleitores tiveram de obedecer à dupla votação, entrando por duas vezes na cabine indevassável. Em Belo Horizonte, segundo a edição de 4 de outubro do Jornal Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, apesar do recorde de comparecimento dos eleitores, a votação, ocorrendo “de forma muito morosa”, só foi concluída às duas horas da manhã.

Novamente os jornais da época retrataram os conflitos, desta vez com comentários ainda mais críticos. No entanto, situações antes frequentes relativas à prática de fraudes começaram a mudar. Em 1955, a Justiça Eleitoral havia instituído um novo título de eleitor – com fotografia e também a Folha Individual de Votação (que vinha junto com o título), por meio da Lei 2.550, de 27 de junho daquele ano, o que possibilitou a fixação e o reconhecimento do eleitor na mesma seção eleitoral. Caso não votasse nem justificasse sua ausência em até 30 dias após o pleito, o eleitor estaria sujeito a multa e a várias outras penalidades. Desse modo, reduziram-se significativamente os registros de eleitores votando em mais de uma seção ou em seção de outro município.

No Distrito Federal – que ainda era a cidade do Rio de Janeiro, então capital do Estado da Guanabara – o Jornal Correio da Manhã, na edição do dia 4 de outubro de 1958, noticiou a apreensão de títulos falsos na 12ª Zona Eleitoral, ressaltando que “dadas, porém, as características do novo título eleitoral, que se completa com a Folha Individual de Votação, esses títulos não puderam ser utilizados. E não puderam, porque, é evidente, seus portadores não encontraram, nas respectivas seções, as folhas individuais a eles correspondentes”.

Dispondo de maior tempo para a imprimir as cédulas oficiais, o Tribunal Superior Eleitoral tomou para si a exclusividade na distribuição desse material aos Tribunais Regionais e aos Juízos Eleitorais, tornando essa logística mais segura. Aeronaves da Força Aérea Brasileira foram utilizados para levar cédulas e os demais materiais de votação aos municípios de acesso mais difícil, em muitos casos jogando, a baixa altitude, geralmente em campos ou plantações, os materiais acondicionados em grossos sacos de pano, para serem recolhidos pelos servidores da Justiça Eleitoral locais.

As eleições de 1958 também se destacaram por serem as primeiras em que os deficientes visuais puderam realmente votar utilizando a cédula única. Eles contaram com o auxílio de uma “cédula-guia” em linguagem Braille, na qual puderam, ao toque dos dedos, identificar através dos pontos em alto relevo, os nomes dos seus candidatos. Ao descrever o material inédito, assim registrou o Jornal Correio da Manhã – RJ, em sua edição do dia 4 de outubro daquele ano: Na votação para senador (...) foi utilizado o processo Braille, para que o votante pudesse ler tocando as pontas dos dedos no cartão pontilhado (alto relevo) o nome de seu candidato. “A cédula oficial foi colocada dentro de uma “cédula-guia, feita em cartolina verde com os nomes escritos em Braille, contendo pequenos rasgos à esquerda que coincidiam com os quadradinhos em branco para o eleitor marcar o candidato de sua preferência. De volta à cabina o cego entregava à mesa a “cédula-guia” e depositava na urna já devidamente preenchida e fechada. Para deputado foram utilizadas cédulas comuns”.

O jornal registrou também o entusiasmo daquele público que, pela primeira vez, estava usando integralmente seu direito de voto em sigilo, uma vez que, para votar utilizando as sobrecartas, necessitavam do auxílio dos familiares para inserir as cédulas (cartões) nos envelopes já lacrados em suas casas. “Comentavam muito em que se deveria votar. Isto se explica porque a maioria deles (moças e rapazes) além de ir votar com o auxílio de um processo de escrita que lhes é de grande valia (o Braille), nunca haviam votado. Cada um assinou, em Braille, o seu nome no alto da ficha fornecida pelo Tribunal Eleitoral. Om auxílio de um guia o votante se diria da mesa para a cabina e vice-versa. Detalhe: a sobrecarta contendo o voto do cego vinha sempre muito bem colada e em geral com excesso. Ninguém esqueceu de fechar o envelope nem quebrou o sigilo do voto”.

A partir das eleições de 1958 inaugura, se também, a prática dos votos pitorescos. Como os eleitores agora tinham na cabine indevassável, além de caneta, cédulas/cartões e uma cédula única, espaço em papel não faltava para registrarem, além dos votos, suas opiniões. Assim, os bem-humorados e os revoltados passaram a deixar mensagens nas cédulas e, em alguns casos, inserir bilhetes na cédula antes de lacrá-la com a cola, geralmente à base de goma arábica, disponível nas cabines de votação. O Jornal Correio da Manhã, na edição de 5 de outubro daquele ano, registrou algumas dessas “inovações”: “Na Quarta Junta, além de talão de rifa, encontrou-se um papel no qual o eleitor escreveu: ‘Deixo de votar porque não gosto desse regime’. Na Sexta Junta, um outro pedacinho de papel dizia: ‘Voto pela reclassificação’. ‘Não voto em ladrão’ eram os dizeres de uma outra cédula, encontrada na 8ª Junta, enquanto na 12ª, foi encontrada uma cédula de Carreiro de Oliveira, na qual o eleitor escreveu: “Não vote nele. Essa Oliveira não dá azeite”. Na 30ª Junta, além de bilhetes, foram encontradas três cédulas num envelope, ‘para senador – eu; para deputado – meu filho e, para vereador – meu neto’. Um eleitor da 7ª Zona colocou em seu envelope: ‘José Burro para vereador. Não promete, mas dá coices’.”

AS CÉDULAS ÚNICAS DE 1960

O cenário político brasileiro fervia quando foi realizado o pleito presidencial de 3 de outubro de 1960 – que seria o terceiro realizado ainda durante a vigência da Constituição de 1946 e o último a ser realizado, em votação direta, até 1989. Naquele ano concorriam à Presidência os candidatos Jânio Quadros (PTN – Partido Trabalhista Nacional), Adhemar de Barros (PSP – Partido Social Progressista) e o Marechal Henrique Teixeira Lott (PSD – Partido Social Democrata). À Vice-Presidência, estavam no páreo os candidatos Fernando Ferrari (PDC – Partido Democrata Cristão), João Goulart (PTB – Partido Trabalhista Brasileiro) e Milton Campos (UDN – União Democrática Nacional). Jânio Quadros, com o apoio da UDN, alcançou a vitória com cerca de 48,26% dos votos. João Goulart foi novamente eleito Vice-Presidente, desta vez com 41,63%.

Em 1960, as eleições também aconteceriam para a indicação de governadores e vice-governadores de estado. Em alguns municípios brasileiros, os eleitores também indicariam prefeitos e vice-prefeitos. Assim, naquele ano a cédula única foi utilizada, pela primeira vez, para todos os pleitos majoritários. A Justiça Eleitoral produziu cédulas oficiais distintas para cada eleição. Naquele ano, porém, ao contrário dos anos anteriores, o Tribunal Superior Eleitoral determinou que as cédulas deveriam ser entregues de uma só vez aos eleitores, a fim de evitar problemas com as filas.

A CÉDULA ÚNICA PROPORCIONAL DE 1962

Às vésperas das eleições marcadas para o dia 7 de outubro de 1962, o país vivenciava um inusitado período parlamentarista. Jânio Quadros, eleito com farta maioria em 1960, renunciara à Presidência da República e o Vice-Presidente João Goulart assumira a cadeira presidencial. O Brasil vivia um período de convulsões sindicais nas cidades, nas áreas rurais, e um Plebiscito já estava marcado para 1963, a fim de permitir que os eleitores escolhessem entre o presidencialismo e o parlamentarismo.

O uso das cédulas oficiais impressas pela Justiça Eleitoral para as eleições majoritárias havia alcançado seu objetivo, mas era necessário avançar. Assim, em 27 de julho de 1962, é publicada a Lei nº 4.109/62, instituindo finalmente a cédula oficial de votação nas eleições pelo sistema proporcional. Seguia-se, à época, o modelo italiano, determinando cores diferenciadas para cada partido, mas, na prática, tal exigência tornou-se demasiado difícil para a Justiça Eleitoral. No entanto, seguindo à risca a legislação, o Tribunal Superior Eleitoral passou a imprimir cédulas oficiais para cada espécie de pleito, contendo todos os nomes dos candidatos registrados.

Em seu artigo 2°, a Lei nº 4.109/1962 determinava que, “para as eleições de senadores e de seus suplentes, deputados federais nos Territórios que só elegem um representante, governador ou vice-governador, prefeito municipal e vice-prefeito, bem como juízes de paz, os nomes dos candidatos seriam impressos em cédulas correspondentes a cada pleito, obedecendo, de cima para baixo, a ordem cronológica do registro e ocupando cada nome uma linha antecedida por um quadrilátero destinado à assinalação pelo eleitor”.

O pleito de 1962 foi complexo. Naquele ano seriam eleitos, pelo voto direto, dois senadores e seus suplentes (já em chapas fechadas), deputados federais, deputados estaduais e ainda governadores e vice-governadores em 11 estados. Em nível municipal, haveria eleições para prefeitos, vice-prefeitos, vereadores e juízes de paz em várias cidades, incluindo capitais. Assim sendo, o Tribunal Superior Eleitoral acabou diversificando em muito os modelos das cédulas eleitorais.

Para as cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo, onde ocorreriam eleições para dois senadores e seus suplentes, governador, vice-governador, deputado federal e deputado estadual, haveria um único modelo de cédula oficial abrangendo todos os cargos em um mesmo impresso. Já para as outras capitais e cidades onde, além desses cargos, haveria eleições para prefeito, vice-prefeito e juiz de paz, haveria três modelos cédulas.

Foi o que aconteceu em Belo Horizonte, onde não houve eleição para governador e vice-governador, devendo, porém, os eleitores preencher três cédulas únicas, sendo uma para a escolha dos dois senadores (com seus suplentes), do deputado federal e do deputado estadual; outra para a escolha do prefeito, do vice-prefeito e do vereador, e uma terceira cédula, para a indicação de um juiz de paz e de seus suplentes. Preocupado com o impacto de tanta complexidade na votação, o Tribunal Regional Eleitoral de Minas Gerais, a exemplo do que também havia feito em 1958, imprimiu e distribuiu folhetos aos eleitores da Capital mineira, orientando os eleitores sobre como deveriam proceder nas eleições de 1962. Além das instruções sobre o que o eleitor deveria fazer ao chegar à seção eleitoral, o folheto também orientava os eleitores fora de seus domicílios eleitorais a se justificarem – no Banco da Lavoura, instalado na Praça Sete, e lembrava os eleitores sobre a preferência que alguns teriam que ter na hora de votar, como idosos, os enfermos, as senhoras grávidas, os juízes eleitorais,  o procurador regional eleitoral e os servidores portadores de credencial em serviço direto no pleito.

Foi em meio à complexidade do cenário político e do processo eleitoral de 1962 que, pela primeira vez ouviu-se falar na aplicação de uma máquina de votar no Brasil. Os jornais defendiam a cédula única como grande sucesso da Justiça Eleitoral e condenavam os parlamentares que desejavam retornar aos modelos do passado e, em meio às dúvidas sobre a permanência do parlamentarismo ou do presidencialismo, Tribunal Regional Eleitoral do Estado da Guanabara (atual estado do Rio de Janeiro), resolveu que parte da totalização dos resultados daquele pleito no estado seria efetuada em equipamentos eletrônicos, contando com o apoio dos computadores do Serviço Nacional de Recenseamento, ligado ao IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, onde seriam instalada a Comissão Apuradora. Tais resultados seriam aqueles apurados pelas 53 Juntas Apuradoras instaladas no Estádio do Maracanã.

No dia 7 de outubro de 1962, o jornal Correio da Manhã, da cidade do Rio de Janeiro, estampava, sob o título “Equipamentos eletrônicos na apuração do pleito GB”, a declaração do presidente do IBGE, Sá Freire: “Nesta eleição, a totalização será feita em um dos equipamentos eletrônicos instalados naquele serviço, o que possibilitará o imediato conhecimento dos resultados.
Em se tratando de uma apuração mecânica e eletrônica, fica afastada a possibilidade de erro na totalização, uma vez que a interferência humana na operação é quase nula”.

  

CURIOSIDADES E FATOS ENGRAÇADOS


Apesar da seriedade da mudança que a cédula única representou, o sistema de votação em papel também teve seus momentos curiosos e inusitados:

  • O rinoceronte vereador: Em 1959, um protesto bem-humorado dos eleitores de São Paulo levou a rinoceronte Cacareco a receber quase 100 mil votos na eleição para vereador. Como os votos eram escritos à mão, muitos eleitores usaram esse método para manifestar insatisfação com os políticos da época.
  • O macaco candidato: Em 1988, o macaco Tião, morador do zoológico do Rio de Janeiro, foi “lançado” como candidato a prefeito pela revista humorística Casseta Popular. Ele recebeu cerca de 400 mil votos, ficando em terceiro lugar na disputa.
  • Discussões sobre votos mal preenchidos: Como a contagem dos votos era manual, debates intermináveis aconteciam entre fiscais para decidir se um voto era válido ou não. Rabiscos, erros de ortografia e até mesmo desenhos humorísticos nas cédulas eram motivo de polêmica.

As eleições de 1962 consagraram as cédulas únicas como meios práticos e mais eficientes de votação, garantindo o sigilo do voto. A votação em cédulas únicas continuou a ser realizada durante o regime militar entre 1964 e 1985, quando, em regime de exceção, houve eleições diretas apenas para os cargos de deputado federal, deputado estadual, vereadores e prefeitos de cidades do interior (com exceção daquelas consideradas como de segurança nacional) e seguiram sendo utilizadas até 1986 quando, com a implantação da urna eletrônica, foram gradativamente deixando de ser impressas, até serem finalizadas no ano 2.000, quando a votação informatizada foi adotada em todo o território nacional.

Seção de Memória Eleitoral

23 de abril de 2025

Maria Berenice Sobral

Larissa Ribeiro (estagiária)

Referências de pesquisa:

Senado Federal; Câmara dos Deputados; Tribunal Superior Eleitoral; Tribunal Regional Eleitoral de Minas Gerais; Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro; Tribunal Regional Eleitoral do Piauí; Tribunal Regional Eleitoral do Rio Grande do Sul; Tribunal Regional Eleitoral do Paraná; Jornal do Brasil – edições de 1955; Jornal Correio da Manhã – edições de 1955, 1958, 1962; Jornal O Estado (Santa Catarina) – edições de 1960; Revista “Manchete” – edições de 1955; Revista “O Cruzeiro” – edições de 1962; https://www.migalhas.com.br/pilulas/309902/bau-migalheiro ; https://memorialdademocracia.com.br/card/leis-tentam-moralizar-as-eleicoeshttps://www.tse.jus.br/imagens/imagens/primeira-cedula-oficial-utilizada-no-brasil-eleicoes-para-presidente-1955/view;https://www.metropoles.com/brasil/cedulas-fraudes-e-mais-como-era-a-votacao-antes-da-urna-eletronica; https://www.tecmundo.com.br/mercado/245955-votacao-urna-eletronica-brasil.htm

 

 

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Atendimento ao público externo na Secretaria - de segunda a sexta-feira, das 12h às 19h 
Em casos específicos, consulte o setor de interesse.
Consulte os endereços dos cartórios eleitorais.

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