Vencedores do Concurso de Causos

Luciana Martins da Fonseca
Cartório da 262ª ZE Serro
Não sou natural de Minas Gerais. Cheguei em razão do trabalho e cá estou há uns bons anos. Contarei, hoje, um causo acontecido justo no meu primeiro dia de trabalho. Fechamento de cadastro – 07 de maio de 2008.
Pouco pude ajudar naquele dia: muito tumulto, filas, inexperiência. Mas tinha também a energia do trabalho novo, proatividade, vontade de pertencer...
Durante o intervalo, para o lanche super corrido dos colegas, deixaram que eu atendesse uns dois ou três eleitores, no ELO.
Sentou-se, então, o Sr. José, com vários papéis e documentos nas mãos, e perguntou:
- Que que gasta pra fazer transferência de título?
E eu respondi:
- Não gasta nada, não.
Ele insistiu:
- Mas o que que gasta?
- É de graça, Sr. José.
- Sim. Mas gasta o quê?
- Não gasta. Todo serviço da Justiça Eleitoral é gratuito.
- Eu sei. Mas o que que gasta pra transferir?
- Não tem que pagar, Sr. José.
Houve uma pausa desconfortável.
Ele tirou o chapéu. Respirou fundo, contrariado. Encostou todos os papéis na mesa e falou pausadamente:
- Eu já en-ten-di, mas eu pre-ci-so sa-ber O QUE QUE GASTA!
Não dava para dizer qual de nós dois estava mais nervoso. Essa é a verdade. Eu já estava tremendo, suando... Não sabia mais sinônimos para fazer o Sr. José entender que não precisaria pagar dinheiro pela transferência do título. Nem multa ele tinha! Era meu primeiro dia. Como ia perder a paciência com aquele senhorzinho tão humilde?
Resolvi olhar em volta. Os colegas já tinham terminado o lanche e um ar de sorrisos nos cercava.
Uma voz vinda do guichê ao lado quebrou o silêncio:
- Ô, carioca! O que gasta pra mexer no título? Gasta RG, CPF, comprovante de residência...
Aí o Sr. José perguntou aliviado:
- Gasta xerox, moça?
- Gasta, Sr. José. Gasta sim.
Nessa época, gastava xerox também.
E o cartório inteiro rachou os bicos. Rachou os bicos!? Eu também soltei uma gostosa risada. Ufa!
Até o final daquele dia, que foi longo, aprendi o uso mineiro de outros verbos também. E, com o passar dos anos, muitos e muitos outros: gastar, rachar, montar, mexer...
Aliás, você aí, que não é mineiro e chegou agora, não passe vergonha quando te perguntarem:
- Cê mexe[1] com quê?
Disfarce esse sorrisinho sapeca, estufe o peito e responde:
- Sou servidor do Tribunal Regional Eleitoral de Minas Gerais.
Se quiser mostrar costume, pode emendar:
- E ainda sou bom de mexida[2]! Trabalho sempre com compromisso, cordialidade e bom humor, uai.
[1] trabalha - trabalhar - V. int.
[2] lida - lidar - V. int.
Lawrence Pereira dos Santos
Cartório da 87ª ZE de Conselheiro Lafaiete
Era uma tarde morna das eleições de 2012 em Conselheiro Lafaiete. Já passava do almoço, os problemas iam diminuindo e pairava aquela sensação de que tudo daria certo, mesmo quando sabemos que tudo pode acontecer até as 17h.
O telefone tocou. Do outro lado, a voz nervosa de um presidente de mesa:
— Tem um eleitor aqui que não aceita de jeito nenhum que não pode votar só com o título.
Suspirei. Já havíamos resolvido urna travada, boca de urna disfarçada de conversa entre amigos em porta de escola, mesário ausente. Mas um eleitor revoltado por causa de documento? Isso, normalmente, o presidente da seção resolvia. Ainda assim, ele insistiu:
— Ele quer falar com alguém do Cartório. Disse que só acredita vendo.
Já conhecia o lugar. Tinha estado lá mais cedo com um técnico, trocando uma urna que insistia em travar no meio da votação. Levei o mesmo técnico, por desencargo e companhia. Em eleição, nunca se sabe se vamos precisar reiniciar uma máquina ou, quiçá, chamar o SAMU.
Chegamos. Corredores movimentados, gente indo e vindo, um calor abafado de democracia em processo. Logo vi o tumulto no fim do corredor. No centro, o eleitor: baixo, agitado, rosto vermelho. Tinha nas mãos o título eleitoral — aquele verdinho desbotado, com as bordas já surradas e marcas de códigos de barra dos canhotos do caderno de votação — e falava alto, como quem prega para uma plateia invisível.
— Tô com meu título! Quero votar! E vou!
Expliquei, com calma, com técnica, com a voz baixa — que é como se deve falar com quem grita demais: o título não tem foto, era preciso apresentar documento com identidade. Ele escutava, mas com aquele olhar de quem já decidiu que só ele está certo.
— Então, se eu tiver identidade e não tiver o título, eu voto? — perguntou.
— Vota, sim. O título ajuda, mas não é obrigatório — respondi, conforme o manual.
Foi o erro. Ele olhou o título nas mãos. Aquele que guardava com comprovantes desde o século passado. O que não plastificou porque "não se plastifica documento". O título que levou a tantas votações, de vereador a presidente, e que nunca falhou. E agora, ali, diante de mim, ele fazia a pergunta que soava como sentença:
— Então pra que serve isso?
Tentei argumentar. Tarde demais.
Rasgou o título em pedaços. A cada rasgada, um palavrão. Contra mim, contra o mesário, contra o sistema. E então, com um gesto súbito:
— Vou engolir isso aqui.
Todos riram. Menos eu. Mas ele estava falando sério.
Com fúria meticulosa, colocou os pedaços na boca. Um, dois, três. Todos. Sem molho. Sem água. Sem hesitação.
Silêncio.
O técnico ao meu lado soltou um “ué”.
— Pronto. Agora isso serve pra alguma coisa — falou o eleitor, olhos marejados, meio sorriso.
Talvez tenha percebido a bobagem, mas vá lá. Ficamos quietos. O mesário anotou qualquer coisa só pra encerrar o momento. Alguém ofereceu água. O eleitor, agora calmo, foi embora. Sem título, sem identidade, mas com a sensação de ter feito justiça com o próprio estômago.
Sugeri ao presidente da mesa que registrasse em ata: “Eleitor não apresentou documento com foto. Votação não realizada. Título destruído pelo próprio.” (E, para mim mesmo: engolido, literalmente.)
Treze anos depois, temo pelo E-título sem foto. E, desde então, quando me perguntam se o título é importante, mesmo sabendo que sim, penso duas vezes. Nunca se sabe quem está disposto a digerir a democracia.
Carla Oliveira Cassaro de Souza Farage
Cartório da 07ª Zona de Além Paraíba
Ao longo de minha jornada na Justiça Eleitoral, não consigo desassociar minha vida, como um todo, do cotidiano da zona. Cotidiano esse com todas as suas vicissitudes, regadas, por vezes, ao stress, às frustrações, e que, nós, com nossa mineirice de ser, logo depositamos uma boa dose de bom humor e alegria e vemos surgir os melhores e maiores “causos” eleitorais que podemos vivenciar, contar, ouvir e aprender.
Assim, coloquei como propósito na aposentadoria, a reunião de todas essas histórias e confecção de um livro e dividirei, de antemão, uma destas pérolas, que espero aguçar a curiosidade de todas e todos em relação às demais.
Nosso causo ocorre no período eleitoral de uma eleição federal, há anos atrás, as vésperas do primeiro turno. Estávamos nos dias de entregar material dos mesários e fazíamos primeiro a zona rural, pois possuímos diversas seções com estas características.
Um presidente de seção, retireiro, que não usufruía de nenhum dia de folga, pois trabalhava por conta própria, mas que não abdicava de exercer a função, pois o fazia com imenso orgulho, solicitou que seu material fosse entregue no sítio dos pais, pois este era mais próximo da seção onde iria trabalhar. Assim, fomos nós, eu e o motorista da prefeitura.
Chegando no sítio, fomos recebidos com enorme satisfação pelos idosos, pais do presidente da seção. Fomos convidados a entrar, ganhamos vários minutos de prosa de ótima qualidade, ouvimos as histórias por eles contadas, foi-nos servido café, broa, goiabada, ganhamos sacola com hortaliças e frutas, mesmo falando que não era necessário. Partimos com a sensação boa de dever cumprido além da nossa missão institucional, mas também da nossa missão como ser humano.
Passado o primeiro turno, na semana do segundo turno, estávamos nós novamente, no mesmo local, para fazermos a entrega do material que seria usado naquele turno. Fomos recebidos com a mesma satisfação e alegria pelo casal de idosos. Entramos, proseamos, tomamos café com broa, mas percebi que eles estavam meio encabulados desta vez, como se quisessem nos contar algo. Então, durante a despedida falei:
- Foi um prazer está de novo com os senhores, desculpa se fizemos algo que não agradou. E se quiserem falar qualquer coisa não precisam ficar envergonhados, vamos ouvir sem nenhum problema.
Foi aí que a esposa olhou pro marido e disse:
- Fala meu “véio”, ela falou que não vai brigar.
O marido encheu-se de coragem e começou a falar:
- Sabe o que é, no dia que a senhora veio aqui da primeira vez, nasceu uma bezerrinha aqui no sítio, e como a gente tinha simpatizado tanto com a senhora, achou que seria uma boa ideia dar o nome da senhora pra bezerra. Ela está uma lindeza, forte que só, mama sem parar!
Naquele momento fiquei sem saber o que falar, não sabia se ria ou se chorava. Olhei pro casal, com a singeleza daquela homenagem e só vinha a minha mente a empatia que tiveram comigo, o que fez gravar nas suas mentes a lembrança do meu nome.
Dei um sorriso largo e exclamei:
- Meu Deus, que homenagem mais linda! E mais feliz estou de saber que a bezerra está forte como vocês falaram! Muito obrigada! Nunca recebi uma homenagem tão carinhosa. Voltarei pra ver quando ela já tiver virado vaca.
Os olhos deles brilharam de felicidade e o meu também, pasmem, por ter virado “xará” de uma bezerra. Tal causo me traz boas lembranças, através de boas gargalhadas, mas também de coração quente, por tanto afeto demonstrado.