Uma casa cheia de emoções e de histórias

Costuma-se dizer que a casa é o lugar onde depositamos nossas vivências e histórias, um templo com multiplicidade de emoções construídas ao longo de décadas ou, muitas vezes, de séculos. São fatos marcantes que fazem parte da memória das pessoas naquele espaço. Pois é em um desses lugares – uma casa no Bairro Cidade Jardim, adquirida pelo TRE mineiro -, que garimpamos nosso achado histórico.

Coincidência ou não, quando a Justiça Eleitoral mineira comprou esta casa, situada na Rua Bernardo Mascarenhas, 317, em outubro de 2002, com uma área de 286m², nos fundos do edifício que foi sede do próprio Tribunal, durante 42 anos, também no Cidade Jardim, o que não se sabia era que aquele imóvel passou a fazer parte da história da política mineira, especialmente a partir dos anos 50. Foram muitas as inusitadas situações ocorridas ali, como, por exemplo, a visita de figuras importantes, como Tancredo Neves, Juscelino Kubitschek, Itamar Franco e Renato Azeredo.

Pertencente ao ex-vereador e ex-deputado estadual e federal Jorge Ferraz e família, a casa, que atualmente é o Anexo IV do TRE mineiro e abriga a Assessoria de Cerimonial e Memória Eleitoral (ACER), no andar térreo, e a Seção de Gestão de Patrimônio (SEGEP/SGA), no pavimento superior, guarda segredos de uma época em que vizinhos se conheciam e se visitavam e em que as rixas políticas eram deixadas de lado por um simples e envolvente jogo de baralho, nos fins de tarde.

Quem nos conta tudo isso é Luiz Carlos Ferraz, 71 anos, um dos seis filhos do ex-deputado Jorge Ferraz e de Dona Ístria. Os outros são Paulo (70), Cândida (67), Márcia (63), Silvana (59) e Rosa (55).

Na tarde do dia 31 de julho de 2015, Luiz retornou à casa na qual viveu com a família durante 47 anos (de 1956 a 2003). Carregando uma pasta cheia de fotos, livros e de reportagens de jornais sobre o pai, ele percorreu os dois pavimentos do imóvel, caminhou pelo quintal (que possui uma goiabeira, uma jaboticabeira, dois barracões e o que restou de uma piscina), visitou cada cômodo. Muita coisa mudou – paredes, banheiros e teto foram reformados e pintados, divisórias colocadas, computadores e impressoras instalados -, mas a memória daqueles anos continua viva para ele.

Com a voz firme e emocionada e com os olhos lacrimejantes, ele enumerou alguns causos que testemunhou quando criança e adolescente. Começa lendo trechos de uma carta de um vizinho – Reinaldo Morais -, um dia após o falecimento de Jorge Ferraz (ocorrido em abril de 1994): “...Mas de tudo, o que ficou foi a imagem da pessoa dele, que, embora tenha sido sempre um grande cidadão, um político de profissão e fé, era, antes de mais nada, um outro pai”.

Luiz Carlos confirma tudo isso, porque o pai dele conseguia, com carisma, reunir deputados estaduais de vários partidos, nos fins de tarde, após as sessões legislativas, para jogar carteado na casa do Cidade Jardim: Israel Pinheiro Filho, Homero Santos, Valdir Melgaço, Carlos Megale, Ronaldo Canedo, dentre outros. Um pai que, em anos eleitorais, abria as portas da residência para receber e orientar eleitores no preenchimento de cédulas de votação. Um homem que, naquele imóvel de efervescência política, fundou o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), depois o Partido Progressista (PP) e, finalmente, o PMDB.

Mas, de acordo com Luiz Carlos, nada se compara a dois inusitados fatos ocorridos lá. O primeiro caso, durante a Ditadura Militar, foi a custódia, pelo ex-deputado Jorge Ferraz, de um preso político à disposição do extinto Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), cujo delegado à época, Davi Hasan, era amigo de Jorge Ferraz. O preso era Luiz Carlos Sena Jerônimo – advogado e radialista em Pedro Leopoldo –, que permaneceu na casa durante quase dois anos.

Já o segundo caso também foi muito semelhante e ocorreu com o prefeito de Lagoa Santa no período de 1951 a 1955, Júlio Clóvis de Lacerda (UDN), que ficou escondido no imóvel, em regime de prisão provisória ou preventiva, devido a uma denúncia de seu adversário político e sucessor na prefeitura local, Lindouro Avelar (PSD), sobre prestação de contas municipais.

As lembranças continuam. Luiz Carlos gesticula, sorri, emociona-se de novo, conta outro fato. Desta vez, na época em que o ex-governador Hélio Garcia era prefeito de Belo Horizonte, entre 1983 e 1984, indicado por Tancredo Neves. Certo dia, fiscais da prefeitura compareceram, inesperadamente, à casa para, munidos de pranchetas e papéis, fazerem observações no imóvel. Indignado, Jorge Ferraz telefonou diretamente para o então prefeito Garcia, que explicou que anotações eram dados comparativos de impostos municipais com os de uma casa de um vizinho próximo do bairro, o Sr. Alair Cota.

Luiz retira da pasta um pequeno livro intitulado “Açominas, um projeto irreversível”, uma coletânea de discursos de Jorge Ferraz na Câmara dos Deputados, entre 1971 e 1977, com prefácio escrito por Tancredo Neves. O ex-deputado Ferraz foi pioneiro nas campanhas pela instalação da Refinaria Gabriel Passos, em Betim, e da siderúrgica Açominas, em Congonhas do Campo e Ouro Branco, em meados dos anos 70.

Por falar em Tancredo Neves, ele e Jorge Ferraz eram muito amigos e constantemente eram vistos em caminhadas pela Avenida Afonso Pena. Tancredo e outros políticos frequentavam rotineiramente a casa do Cidade Jardim, e faziam dela um dos principais pontos de encontro para rodas de conversa. Esse contato da família Ferraz também com eleitores, cabos eleitorais, vizinhos e imprensa, em anos eleitorais, transformava o cotidiano da residência em um “ambiente de amizade e acolhimento”, recorda Luiz Carlos.

Após a aquisição do imóvel pelo TRE, em 29 de novembro de 2002, o espaço já abrigou o cartório da 26ª Zona Eleitoral e o Foro Eleitoral de Belo Horizonte, em 2005, e a Comissão de Propaganda Eleitoral, em 2008. Em março de 2003, a família Ferraz despediu-se da casa de uma maneira inusitada: em frente ao imóvel, foi colocada uma faixa de pano com os seguintes dizeres: “A família Ferraz se despede com pesar e saudades da vizinhança da rua e do Bairro Cidade Jardim. Abraços”.

Após quase duas horas de entrevista, Luiz Carlos Ferraz agradeceu a acolhida dos “novos proprietários”, deixou-se fotografar e foi-se embora pela Rua Bernardo Mascarenhas, na certeza de que, mesmo que por alguns momentos, o bom filho à casa retornou.

Publicado em 20/11/15