Caminhos de Barro

Encontrei “Caminhos de barro” no acervo da Memória Eleitoral. Se eu fosse cineasta, o argumento, o roteiro e os personagens já estavam prontos, porque é um texto carregado de emoção; verdadeira pérola que traduz uma época em que a Justiça Eleitoral engatinhava e desafiava os servidores. A autora, já falecida, é Eleonora Fernandes Rennó, servidora efetiva aprovada no segundo concurso do TRE-MG, realizado em 1951. Integrante da Comissão Eleitoral da Ordem dos Advogados do Brasil, foi a primeira mulher a ser agraciada pelo TRE-MG com a Medalha de Mérito Eleitoral “Desembargador Vaz de Mello”, em 2011.

Seu colega Anis José Leão, também falecido, trabalhou com Eleonora no Fichário-Geral, e assim a definiu: “Força é confessar que essa criatura me causou impressão muito forte, muito profunda. Bem falante, comunicativa, dizia frases coordenadas e subordinadas, com desembaraço. Para logo percebi que era daquelas pessoas que são capazes de ler o que não foi escrito e ouvir o que não foi dito. Esparzia entusiasmo pela vida, raciocínio superveloz, simples servidora, aprilina de nascença e, na maciota, como quem não quisesse nada, puxava minha língua, até que ela virasse tapete, no mínimo, gravata. Fazia parte da tropa de choque da secretaria, porque aprendia rápido, era dedicada e tirava um quadro de sete varas na capina dum serviço tedioso”.

 

Seguem trechos dos Caminhos de barro:

 

“Tenho lido e, às vezes sabido, que antigos colegas vêm contando histórias curiosas sobre o passado, não tão longínquo, do Tribunal Eleitoral de Minas Gerais. Também me vejo a relembrar coisas, veteraníssima que vivi intensamente gloriosos momentos nessa nossa Casa.

Éramos muito poucos e fizemos difíceis eleições. Pouquíssimos bacharéis e abnegados ‘barnabés’, que atravessávamos noites conferindo mapas e só lápis, papel e as alavancas das máquinas de calcular. Sem nenhum escândalo, nem qualquer imputação que manchasse os pleitos mineiros. O Tribunal de Minas sempre foi exemplo de organização e lisura.

As datilógrafas – exímias – faziam as súmulas pela noite adentro, em duas cores. E às vezes faço rir aos novos, se descrevo as mesas capengas em que trabalhávamos, cujas gavetas já nem se abriam direito, restolho das repartições estaduais. Elaborávamos intrincadas e volumosas promoções de cancelamento de inscrição, expurgando manobras perceptíveis para aumento de eleitorado, ou ousávamos dar rigorosos e bem fundamentados pareceres de muitas laudas em processos administrativos, tudo autuado a subir para o julgamento da Egrégia Corte.

Nossos colegas viajavam, em grupos de três ou quatro, para levar pessoalmente material para as eleições a longínquas Zonas, em velhos jipes quebradiços também cedidos pelo Estado, varando caminhos apenas suspeitados, por roteiros traçados pelas antigas Tábuas Itinerárias do DER-MG, sob a chuvarada de setembro, presos noites a fio no barro e na escuridão. Certa vez conseguiram comprar uma lanterna numa vendinha de beira de estrada, em madrugada fria, depois de horas de marcha sem rumo, insones e famintos, atolados. Ao regressar, solicitaram indenização da despesa. Foi-lhes negada, virou recurso e em saborosos versos. Era o início da briosa tradição do rigor.

...E hoje, quando contemplo o conforto e a beleza do prédio (da Prudente, 320) perfeitamente equipado e iluminado que abriga a geração nova, também me comove a história heróica de sua construção: não se contratou nenhuma empresa e, com a maior economia para a Nação (orçamentos curtíssimos), os funcionários, apenas com os vencimentos de seus cargos (magros, então), tudo fizeram: engenheiro, arquitetos, administradores, tesoureiros, mestres-de-obras, carpinteiros, eletricistas, pedreiros, decoradores, todos colegas nossos, que nem receberam horas extras, porque, para isso, até pouquíssimo tempo atrás, nunca tinha havido verba.

Muitos já se foram. Mas dos que estão vivos não podemos deixar perder essas histórias. E muitas outras, iguais em desprendimento e grandeza”.

 

Texto: José Luís Cantanhêde

Publicado em 15/4