Minha vida tribunalícia

O senhor... Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas - mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior.” (Guimarães Rosa – Grande Sertão: Veredas)

O destino é algo curioso, surpreendente, imprevisível; “fino, estranho, inacabado”, diria Guimarães Rosa. Promove lembranças, andanças, memórias, une e reúne vidas num mundo pequeno demais. Já imaginou professor e aluno se reencontrarem após 34 anos? O professor, em questão, é Anis José Leão, e o aluno, este que aqui escreve.

O mestre Anis Leão, das aulas de “Direito Usual” e de “Ética e Legislação”, do Curso de Comunicação Social da UFMG, do qual é um dos fundadores, é o mesmo que reencontrei aqui no TRE, no início dos anos 2000, - de humor fino, carismático, de agradável discrição e um jeito guimaraniano no trato com as palavras escritas e por vezes faladas. Um reencontro renovado de tempos em tempos, quando o professor visita este Tribunal em eventos ou por contato telefônico.

Indago dele o início na vida de servidor público, e ele me leva a 1953, ano em que largou Medicina e cancelou a matrícula, em fase de dificuldade financeira: “Eu sem dinheiro, salvo os 3 mil cruzeiros de empréstimo de meu pai, postos na mão de Dona Cotinha, para garantir a pensão, onde morei longo tempo”. Nesse mesmo período, foi contratado para o Jornal “Tribuna de Minas”; e foi, ainda, aprovado no concurso para o IBGE.

Também nessa época, Anis Leão prestou concurso para o TRE mineiro para os cargos de datilógrafo e escriturário. Foi aprovado em terceiro lugar. Havia 800 candidatos e zero vaga. “José Mesquita de Carvalho, examinador de Português, pediu-me o plural de fruta-pão, palavra que eu ignorava e jamais usei nos 40 anos de Tribunal; Quem examinou Direito Eleitoral, não sei. Eu sabia, de cor e salteado, todo o Código”, recorda.

Sobre o concurso, o Professor Anis, ao se preparar para o certame, revela que “de repente, alguém havia envenenado minha ingenuidade e bobice de capiau de Itaúna, minha terra natal, e, grávido com a futrica, deu-me no bestunto perguntar ao Luís Soares, meu conterrâneo, se era verdade que no concurso só passava filho de desembargador. Luís, sério, filho de fazendeiro, respondeu: ‘Eu não sou filho de desembargador, pode ser que passe algum parente, mas se você der no couro, entrará, também’. Cresci de esperança.”

A estreia no TRE foi no dia 13 de dezembro de 1953, com um vencimento, em moeda de hoje, de R$ 1.700,00. Portaria do então Diretor-Geral José Cesário Horta determinou a lotação do então novato para a 4ª Seção, do Fichário-Geral, cheia de arquivos de aço, com seis ou oito grandes gavetas cada um. Para esta seção vinha a ficha cartolinada, manuscrita, cópia fiel do título de cada eleitor que se inscrevesse em Minas Gerais. “Ocupávamos o térreo do prédio onde funcionava a Assembleia Legislativa, na Rua dos Tamoios, 341, Centro, defronte do famoso bar ‘Gruta OK”’.

Ah, o Fichário Geral, conhecido como “Penitenciária da Casa”, com seus 40 funcionários!... - relembra o Professor Anis, - setor em que “o falatório era de endoidar, pulava mais que burro bravo, serviço monótono, enlouquecedor, mesmeiro, tarefas de mentecapto, gente rebelde posta ali como castigo da Administração, que nada cobrava dessa subunidade, da qual, meses depois, eu viria a ser chefe”.

Diretor de Divisão do TRE-MG entre 1962 e 1994, participou da “Comissão de Notáveis”, cuja missão era propor um projeto de reforma eleitoral, nos anos 90. Apoiou, com muito gosto, a criação, em 1992, da Assessoria de Imprensa do TRE-MG. No dia 17 de dezembro de 2003, no auditório do TRE-MG, o Professor Anis Leão, jornalista e autor de vários livros sobre Direito Eleitoral e de centenas de artigos sobre essa matéria, recebeu a Medalha do Mérito Eleitoral “Desembargador Vaz de Mello”, homenagem a quem contribuiu para o desenvolvimento da Justiça Eleitoral.

Ele aposentou-se em fevereiro de 1994. Mas diz que ainda há muito a lembrar, porque, como nos confidenciou: “Não sei se e quando chegarei ao fim do carretel; até lá, a porta do coração está mais larga, escancarada, sem trinco, tranca, taramela ou fechadura; entre”.

 

Por José Luís Teixeira Cantanhêde, da Assessoria de Cerimonial e Memória Eleitoral/TRE-MG

Publicado em 5/2/16